terça-feira, 15 de março de 2011

A vida demonstra, mostra e desmonta. Cabe a nós remontarmos.

Caros Leitores,
Hoje venho em desabafo. Estou muito triste.
Ontem iniciamos a aplicação do Projeto Fazer Direito na CPPL II. Sinceramente, a turma me surpreendeu. Participaram de forma positiva, deram suas opiniões; enfim, um sucesso para qualquer um que está propondo lecionar uma aula.
Como combinado com os voluntários do projeto, todas as terças-feiras, naquele estabelecimento prisional, iria ficar responsável pelas aulas uma determinada voluntária, a qual prefiro não citar o nome. Fomos juntas hoje, - já que era o seu primeiro dia - e a turma agira como aula passada: exemplar. E por isso, na saída, vinhamos conversando no caminho de volta sobre o tal rendimento da aula. Conversávamos animadas no carro. Eu dirigia, minha mãe estava no banco ao lado, e ela, atrás. Ela comentava o quanto tinha sido uma excelente experiência, que tinha sido incrível e etc.
O celular dela toca. Ela fala algo que não consigo escutar. Ela desliga e começa a chorar. Naturalmente, fiquei preocupada e perguntei o que acontecera. Ela disse chorando: "Rosa, assaltaram o comércio dos meus pais. Eles estavam lá. Não querem me contar o que está acontecendo, não dizem nada."
Sem saber o que dizer, pedi para ela ter calma e mudamos a rota até a casa dela. Os pais dela moram em um interior que fica a 300 km daqui de Fortaleza, mais ou menos, e possuem um comércio no local. Ela mora aqui com a irmã.
Chegando lá, estava aquele clima pesado, ela chorando, contudo ninguém sabia o que tinha acontecido de fato. Ela foi logo arrumando as coisas para ir para o interior. Perguntamos se ela precisava de alguém para dirigir até lá porque nem ela nem a irmã estavam em condições. Conseguiram que um amigo fosse. Fomos embora e pedi que quando ela tivesse notícias e se estivesse em condições, me avisasse.
Isso era por volta das 15:30, exatamente o horário que terminam nossas aulas na CPPL II. Quando foi a noite, vejo no meu celular uma chamada não atendida do número dela. Em um instante, fiquei tranquila. Afinal, pensei que por ela ter lembrado de me ligar logo, não teria acontecido o pior. Mas aconteceu. Eu retornei a chamada e ela atende. Perguntei como ela estava e ela responde: "Rosa, mataram meu pai". Fiquei sem palavras. Como estou agora, escrevendo nesse blog. E perguntei como tinha sido. Ela disse: "Ele se abaixou para pegar algo, o ladrão achou que ele ia reagir e o mataram. Minha mãe estava lá, viu tudo. Ela passou mal, está internada agora." Falei o que consegui e desliguei.
E eu ainda não disse o mais chocante: o pai dela, semanalmente, fazia visitas aos presos da Cadeia Pública da região. Ia para "dar uma palavra amiga", como eu soube que ele dizia. Ele a apoiou quando soube do projeto, disse que era lindo o trabalho. E sempre que nos encontrávamos nesses últimos dias, ela me contava com orgulho das visitas do pai.

Que vida. Mas, o que dizer? O que dizer para ela que perdeu um pai? O que dizer para a mãe dela que perdeu o marido? O que dizer para as milhões de vítimas em nosso país?
E depois que soube disso tudo, eu sentei em um banco da universidade onde estudo e lembrei do que me perguntaram uma vez. Na CONESP I, um palestrante me fez a seguinte pergunta: "Se matarem o seu pai, você continuaria com esse projeto?"
Eu me questionei sobre como é a atuação desse projeto e como tem crescido. Hoje, depois de tudo, eu tenho a minha resposta. A dor seria insuportável. Quando eu recebesse da notícia, eu ficaria com raiva de mim mesma. Mas depois, com a razão, e sabendo que o cárcere no Brasil é uma faculdade de crimes, pensaria nas próximas vítimas que são frutos dessa mesma faculdade. O Estado tem por Lei o dever de proteger o cidadão. A prisão deveria servir pra isso, a fim de que quem praticasse um delito pague, mas que não volte a delinquir. E o que acontece?
Nós, como sociedade, também temos o nosso papel com toda essa história. Não queremos de volta em nosso seio, marginais. Queremos homens e mulheres que possam conviver de forma harmônica. Para que não apenas eles desfrutem da sonhada liberdade. Que nós também possamos tê-la, sem nos aprisionarmos em nossas próprias casas com medo de sermos as próximas vítimas. 
Não estou sendo romântica ao dizer isso, pelo contrário, estou sendo cruelmente realista. Não devemos nos vendar para tal realidade. Porque quem paga o preço somos nós. E você, que preço está disposto a pagar?  

domingo, 13 de março de 2011

Um lanche inesperado.

Meus Caros,
À convite da Diretora Capitã Keydna, fomos participar de um evento na Casa de Privação Provisória de Liberdade II (CPPL II). Inclusive, houve uma reportagem do Diário do Nordeste - que ainda saíra de promessas de publicação - a respeito do Projeto Renascer que busca a evangelização dos internos daquela unidade. Fomos, ainda, com o propósito de acertarmos como o Projeto Fazer Direito poderia participar das atividades dos presos dali. Eu, Géssyca e Samuel (o Pedro não pode ir), chegamos ao local às 9:00 horas da manhã. 
Aguardamos um pouco e entramos na sala da Direção. Combinamos que antes de conversar, iríamos conhecer a unidade. Entramos como de costume: sem celular, pen drive e chave. Confesso que estava acostumada com a estrutura do IPPOO II, já que visito, rotineiramente, o local a mais de um ano. No IPPOO II, há uma média de 550 presos, com variáveis nesse número. Afinal, todos os dias, entram alguns e outros saem. Já na CPPL II, há o dobro. Como o próprio nome sugere, está destinada aos presos provisórios, mas pode-se encontrar um número considerável de condenados. O número é de 1.000 internos, mais ou menos. E a estrutura é, pode-se dizer, inferior. Com o dobro de internos, tem-se a metade da estrutura. Digo de forma simplória, mas que reconheci logo que adentramos no local.     
Conversamos com eles e falamos sobre o Projeto Fazer Direito. Dissemos que pretendíamos iniciar as aulas lá. Recebemos, em resposta, muito carinho. É o que sempre recebemos. Eles são homens que infligiram a Lei, mas nunca deixarão de ser GENTE. Não nos engoliram, não avançaram! Eles já estão pagando pelos erros passados, mas que isso seja da forma em que a própria Lei determina. Não é para cumprir a Lei? Então que ela seja cumprida!
Depois de explicarmos como eram as nossas atividades, entramos em uma cela na qual estava um preso que eu já conhecia: o Hamurábi (cito seu nome porque o mesmo permite). Homem inteligente, de boa oratória, de vocabulário rebuscado, de raciocínio incrível. Eu o conheci do IPPOO II, mas fora transferido para a CPPL II a alguns meses. Ele tem quase completo o ensino médio, mas fala muito melhor do que muita gente formada, inclusive da minha área! Como dizia, estávamos na cela e conversávamos. Éramos nós três estudantes e uns cinco ou seis internos.
Foi quando chegou a quentinha do almoço. Eles se entreolharam e disseram: “Hoje é buchada, não vamos almoçar!”  Eu olhei para eles e disse: “Não acredito! Vão estragar comida!” Aí, eles responderam: ” Rosa, isso é horrível.” Na hora, eu pensei que era exagero deles. Que podia não ser a melhor comida do mundo, mas é que deveria ser ao menos, comestível. Afinal, era comida! Eu disse: “Então, quero ver, passa essa quentinha pra cá. Me dá uma colher, que eu vou ver se isso é tão ruim mesmo. “A reação deles foi inesquecível, assim como a minha depois. Os presos que estavam ali olhavam pra mim, como quem não acreditava no que estava vendo. Eles ainda me advertiram, disseram que eu não deveria comer. Eu, sinceramente, queria sentir aquilo. Queria sentir uma milésima parte do que eles viviam. Porque só assim, penso eu, posso entender o mundo deles e tirar as minhas conclusões.
Eu comi. E como podem ver na foto, foi de longe a PIOR coisa que eu já comi na minha vida. Eu não sou fresca para comer. Como em restaurante caído, se me chamarem. Mas não tem como explicar como aquilo estava horrível. Eu nem como carne, por opção, mas pelos motivos que já falei, queria provar aquela buchada. Estava gosmenta, e se misturava com o arroz e o feijão…não havia como comer nada daquela quentinha sem a nojenta buchada! Vou parar por aqui. Para que vocês não fiquem enjoados e parem de ler o nosso blog.
Depois do “lanche”, (eca!) conversamos com a Capitã Keydna e acertamos tudo. Ficaríamos indo como fazemos no IPPOO II: 4 vezes por semana, uma hora de aula por dia. Assim, um de nós vai uma vez por semana.
Agora, estamos aguardando o material escolar chegar na unidade, para iniciarmos mais aulas!
Comentem! Deem suas opiniões.
Obrigada, mais uma vez.
Rosa Pinheiro  

Começando pelo começo.

Escolho o primeiro “post” para escrever como surgiu, o que hoje chamamos - com orgulho e satisfação juvenil -, de Projeto “Fazer Direito”. Em Novembro de 2009, conheci o Instituto Penal Professor Olavo Oliveira II (IPPOO II). Calma, gente, não fui presa (ainda). Fui ao local porque me inscrevi em um Projeto intitulado ”Populações Carcerárias” ofertado pelo curso de Direito da Universidade de Fortaleza (Unifor). Como o próprio nome do projeto mostra, os alunos inscritos iriam estudar sobre estabelecimentos prisionais do Ceará. Tal estudo não poderia ficar apenas na teoria. Até porque nós cearenses não costumamos escrever sobre o tema. Na verdade, nem nós brasileiros. Assim, eu, juntamente com 49 alunos, conhecemos tal presídio.
A turma era entusiasmada. Você, caro leitor, nem imagina a agitação que foi. Aquela multidão jovem esperava curiosa pelo universo a ser descoberto. Entramos e um dos presos se apresentou e nos disse: ” Olá, sou Fulano. Vou mostrar para vocês como funciona essa unidade”. Nos levou à cozinha, escola, local onde trabalham, enfermaria, enfim, conhecemos tudo. É uma estrutura diferenciada, ou melhor, privilegiada, no Estado. A maioria não é bem assim…
Para o “gran finale”, conhecemos os internos que faziam parte do Projeto APAC naquela unidade. Eu teria que levar um “post” inteiro para explicar sobre tal. Tem muita coisa o que dizer, mas resumo em que é “uma metodologia aplicável àqueles que cometeram atos infracionais a fim de recuperá-los a partir da valorização humana”. Entramos em uma vivência (aglomerados de celas) com dezenas de homens “perigosos” ao nosso redor. Olhei em volta e vi apenas os “homens”, mas alguns de nós, parecia enxergar “perigosos” em letras maiúsculas. Era notório o medo de alguns. Outros, como eu, conversavam normalmente, como quem fala do tempo quente ou do placa do recente jogo de futebol no elevador ou na fila de um banco. Ressalto que são avaliados diariamente aqueles que fazem parte do Projeto APAC naquela unidade. Assim, não colocam em “risco” aqueles que os visitam.
Falávamos em retornar ao local inúmeras vezes, para fornecermos nossa presença e palestras sobre os mais diversos temas. Iríamos, de forma periódica, participar da ressocialização daquele determinado grupo “apaqueano”. Dessa forma, em nossa primeira, - e única, como falarei -, prometemos futuras visitas. Literalmente, demos as mãos, fizemos uma oração e nos abraçamos. Parecia cena de filme! Ao retornarmos, estávamos ainda mais empolgados. Pra mim, foi o início de tudo. Para alguns, o fim de pouco.
Poucas semanas depois da tal visita, nos foi comunicado que a Unifor não iria mais proporcionar tais idas à estabelecimentos prisionais, e consequentemente, ao IPPOO II. Isso se justificaria pelo suposto risco à integridade física de seus alunos universitários. Reunimos-nos com a coordenação do curso de Direito a fim de maiores esclarecimentos. Eu queria ter chorado, ali mesmo, quando os ouvi falar. Porque parte de mim, sem hipocrisia, tinha ficado naquele dia no IPPOO II. E essa parte dizia que eu assumira um compromisso perante aqueles homens. Logo, porque realmente assumimos! E mais ainda, um compromisso perante toda a sociedade. Porque sabemos que quem comete ato infracional vai além da vítima, atinge ao seio social. E para que isso não se repita, a “cadeia” deve atingir a recuperação integral dos indivíduos que nela adentram. Mas isso é teoria penitenciária, não irei além.
Saí pela porta com a certeza no peito de que acabaria por ali - na Unifor - e que começaria logo depois, mas não tinha a menor ideia de como. Alguns, como eu, se mostraram desconsolados. Ficamos de conversar depois e marcamos para determinado dia uma reunião com o grupo. Chegado o dia, conversamos. Mas não foi nada do que imaginei. Conversamos sobre a possibilidade das visitas continuarem, mesmo sem o “apoio” institucional da universidade. Ninguém, e repito, ninguém quis continuar. Toda aquela jura eterna, de tanto fervor, parecia ter evaporado. E evaporou. Mas respeito a posição deles, porque a louca sou eu. Afinal, quem vai por conta própria percorrer até a BR - 116, km 17 conversar com quem matou, roubou e estuprou a troco de nada? A louca sou eu, que penso que isso fará alguma diferença para a sociedade. Não sou?
Depois de alguns dias, o Rodrigo - um dos alunos que faziam parte do projeto - conversou comigo e fomos até o IPPOO II. Falamos com a Diretora do presídio e nos mostramos disponíveis. Eu e o Rodrigo ficamos na pendência de que, em caso aparecesse algo que pudéssemos fazer em grupo, nos comunicaríamos.
Passou algum tempo, e retornei às prometidas visitas àquele lugar. Dessa vez, não estava acompanhada. Passei a participar e colaborar com o fosse necessário e possível para uma mulher com o meu porte físico (baixinha e nada forte). Então, desde a reunir-me com os familiares dos internos a fim de discutir problemáticas cotidianas até analisar processos com as advogadas - contratadas pela Secretaria de Justiça - que trabalham no IPPOO II, eu fiz. Do que vi, tenho muita história para contar, que dará outros “posts”. 
Nesse intermédio de tempo, até agosto de 2010, que foi onde a ordem de algumas coisas mudaram, não eu passava muito tempo sem ir ao presídio. Na realidade, até hoje não passo. Apenas em caso de viagem ou força de contratempos inadiáveis, que passo mais de duas semanais sem ir. É raro. Atualmente vou uma vez por semana, no mínimo. Já faz parte da minha rotina.
Em agosto de 2010, conheci um rapaz, assim, louco como eu. Só que era um louco diferente. Nos conhecemos em um Congresso de Direito Penal, em frente àquelas mesinhas de café e água. Ele pegava café. Conversamos daí. Falávamos sobre várias coisas e de repente, não sei como, falei sobre às minhas idas ao IPPOO II. Lembro bem, ele dizia: “Eu sou muito cético em relação ao homem que comete crimes, não acredito que ele possa mudar”. Não aguentei e falei: “Eu te desafio a te mostrar o contrário, topa?” E você, toparia? Ir à um presídio com uma pessoa que você não conhece para ela tentar te mostrar o lado que você realmente acredita não existir? Ele é que nem eu. Disse que topava: louco.
Marcamos um dia, ele me buscou na minha casa, erramos o caminho (várias vezes, já que por onde eu costumava ir estava interditado) e por fim, quase vivos, chegamos onde prometi levá-lo. Ele nunca tinha entrado em uma cadeia. Ainda bem que entrou como “visitante”, não é? Assim, ele não precisaria de plano de fuga para sair naquele dia. (Brincadeira, gente)!
Tentei mostrar as “acomodações”. E chegamos nas vivências. Entramos em uma das que faziam parte do projeto APAC e conversamos com alguns internos. Ao saírmos, olhei para ele ansiosa e perguntei: “E aí?”. Como quem pergunta: “Ganhei a o desafio?”. Ele balançou a cabeça e disse: “Não posso dizer nada, é muita informação”. Eu entendi o recado.
Dias depois, ele me liga e assim que atendi, me disse: ” Temos que fazer alguma coisa com eles, o que podemos fazer?” Aí eu falei: “Estou apta a ideias”. Simplesmente, naturalmente e inesquecivelmente, ele falou: “Podíamos dar aula de Direito para os presos”. Essa frase aparece nas minhas melhores lembranças até hoje. E tenho certeza que assim será por muito tempo.
Daí, liguei para dois amigos meus: Samuel e Géssyca. E eles toparam! Aceitaram formar um grupo e lecionar Direito e Cidadania para aqueles que são tratados, por alguns, como bichos. Que são vistos com asco e repulsa. Mas que precisam ser enxergados como são: seres humanos. De que espécie seriam? É a mesma que a minha e a sua. Eles devem à sociedade e irão quitar essa dívida, mas que seja com dignidade. A mesma que deverá ser encontrada com eles, quando voltarem a nos encontrar aqui fora. Ou você acha que eles não sairão?
Obrigada infinitamente àqueles que leram.
Rosa Pinheiro